Entrevista com Ana Hupe
Juliana Gontijo
Realização: Paço das Artes
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Juliana Gontijo: Como Malungas continua o projeto Leituras para mover o centro?
Ana Hupe: O projeto Leituras para mover o centro partiu de uma relação minha com a literatura, como forma de me colocar no lugar do outro. Estava numa residência na África do Sul quando descobri, numa coletânea de contos de escritores africanos e afrodescendentes, um conto da escritora brasileira Conceição Evaristo. A história do conto ocorre num ônibus que vai da zona sul do Rio de Janeiro para uma favela na periferia. Uma empregada doméstica levava frutas que tinha ganhado da patroa para os dois filhos pequenos. Um homem assalta o ônibus, rouba a todos, mas ela reconhece nele o pai do seu filho mais novo e ele não a assalta. Quando o ladrão foge, as pessoas do ônibus a violentam, porque a consideram cúmplice. É uma história terrível, como muitos contos da Evaristo. Não conhecia, naquela época, nenhuma escritora negra brasileira e fiquei pensando em como somos doutrinados desde uma perspectiva europeia, branca e masculina. Como estava na África do Sul vivendo uma experiência de desigualdade extrema entre negros e brancos, essa descoberta funcionou como uma quebra de paradigma nas minhas relações sociais. O fim do apartheid é muito recente, e a discussão constante sobre a descolonização atua lá como uma cura coletiva, enquanto aqui, no Brasil, se fala pouco da necessidade de nos libertar do inconsciente colonial, e o racismo é algo muito velado.
Leituras para mover o centro partiu, então, de um desejo meu de entender quem são as escritoras negras brasileiras e que tipo de literatura escrevem. Reuni vários livros publicados por africanas e afrodescendentes brasileiras a partir de encontros com imigrantes africanas moradoras do Rio de Janeiro, às quais perguntava qual sua relação com a literatura e se essa literatura era um lugar para descolonizar o corpo.
Muitas me trouxeram livros que acreditavam ser representativos do lugar de sua origem, como os de Cheikh Anta Diop, um dos escritores mais reconhecidos do Senegal. Comecei a entender um pouco mais da literatura de cada lugar a partir dessas mulheres, porém percebi que esse tema era difícil de abordar, porque a maioria delas não tinha uma relação com a literatura. Tudo passa pela oralidade: as histórias são orais, e as conversas que tínhamos sempre iam para um lugar muito além da literatura. Em Malungas, portanto, decidi abandonar essa pergunta, embora o projeto ainda conserve uma relação com a literatura: para cada mulher que fotografo, construo uma história não linear e bastante aberta, a partir de recortes de livros. Além do mais, quis trabalhar a questão da latino-americana na Europa e não apenas da mulher negra imigrante, pois eu mesma vivo numa itinerância entre Alemanha, Brasil e vários outros lugares. Na minha vida na Alemanha, há a presença eterna do casamento como uma forma de obter um visto para permanecer no país legalmente e estou sempre ajudando com traduções ou sendo testemunha, é quase um ativismo.
JG: O Afrofuturismo é uma referência estética e conceitual para ambas as propostas. Como ele atua nesse contexto de imigração e descolonização dos corpos?
AH: O Afrofuturismo sempre foi usado como uma arma, como uma estratégia estética e política da diáspora africana dos Estados Unidos para se tornar visível e demonstrar seu poder. Essa forma artística não olhava a história de modo linear, mas sim como acontecimentos perpendiculares. O Afrofuturismo transforma passado, presente e futuro num cometa, como se tivéssemos só o tempo presente. Em Leituras para mover o centro, brinquei com essa ideia de futuro desde uma estética bem artificial, cheia de LEDs e produtos chineses, mas quis trabalhar só com o preto e o branco em Malungas. Diante de uma fotografia em preto e branco, perdemos uma noção linear de espaço-tempo, principalmente se a fotografia tiver a granulação do analógico: ela pode ser tanto de 1920, como de 2050. Os tempos se misturam. Imaginei um futuro em preto e branco, em vez de um futuro de cores cibernéticas. Como referência para os retratos, usei as cartes-des-visites do fotógrafo alemão Albert Henschel. Ele havia sido contratado pela corte portuguesa no Brasil como fotógrafo oficial por volta de 1850, e usava técnicas semelhantes às que utilizava para retratar a corte para fotografar negros escravizados em seu estúdio, numa tentativa não só de documentá-los, guiado pelo exotismo, mas também de enaltecê-los como sujeitos. Ele usava uma câmera fotográfica com quatro lentes objetivas, que permitia, num mesmo negativo, obter quatro fotografias independentes e produzir, assim, um número maior de cartões de visita. Adaptei a técnica e usei uma máquina Lomo, inspirada no modelo usado naquela época, por ser mais barata e fácil de conseguir. Outras técnicas antigas, como a do fotograma, por exemplo, me permitiram, novamente, explorar um anacronismo temporal. O processo, que data do princípio da fotografia (aproximadamente 1850) é lentíssimo: a cada foto, eu precisava permanecer trinta minutos num quarto escuro. Nesse projeto, entrei de fato num outro espaço-tempo. Espero, portanto, que a exposição traga essa confusão temporal.