Como perder o peso do corpo:
o verso e o mergulho, a escrita e o mar.
(ao meu amor)
Eu estou de frente pra Ana Hupe e a observo enquanto escrevemos. Uma mesma mesa serve de apoio para nossos laptops, um guaraná zero e dois expressos nessa lanchonete moderninha de uma instituição paulistana de arte e residência. Isso pode parecer desimportante, mas não é. E tem muito barulho aqui. Ela acaba de me dizer que a água São Lourenço tem lítio. Quem diria? Quanta alegria nesse copo azulado. Estamos aqui com a desculpa de estarmos no exercício de um processo experimental de escrita: convidei-a pra escrever o texto da exposição juntos, e estamos com um arquivo de Google.docs compartilhado aberto. No nosso encontro digital, escrevemos juntos. No nosso encontro real, eu a observo.
Esse preto é meu.
Esse azul é nosso.
Na parede, linhas repetem o horizonte que, agora, é verso. Como ondas, como pautas de um caderno, como códigos de uma escrita, há, sobre o branco, o azul do papel carbono formando uma ode à própria escrita e à sua relação com a vida como modo de inscrição sobre a superfície terrestre. Sobre as linhas, um conjunto de fotografias, serigrafias, objetos e outros tipos de anotações importantes para uma associação entre nadar, estar no mar, estar só, meditar e escrever como processo singular de elaboração do mundo e de estar no mesmo. Essa exposição vem mostrar que há tipos de dança que ensinam a beleza da solidão que nos é tão ontológica quanto a angustia, o desamparo, a morte e o tesão.
O interessante é que falamos da escrita, mas os textos de Ana Hupe não aparecem por aqui. Ela escreve muito, mas corta tudo depois. Segundo ela “prefiro não”. Mas está lá: “Escrever teria alguma coisa a ver com uma solidão essencial.”.
A canoa no centro da galeria se chama “projeto/anúncio moradia : um ano embarcado”. Sim, isso que mostramos é uma instalação, mas sobretudo é a apresentação de um projeto no qual Ana Hupe morará durante um ano sobre a água, sem o peso do corpo, ausente da vida digital, solitária e não apenas capaz de contemplar a natureza, mas disponível a uma vivência mais presente dos lugares e mais concentrada na criação. Dentro da canoa, uma gravura do verso da cidade e uma pilha de papéis virgens a serem gravados por outros versos a serem pescados ou coletados. Falamos de nossa pele como lugar onde o mundo se grava em nós. E é da busca por uma ideal condição ideal de reflexão que tratamos nessa mostra.
Empenhada, também, numa pesquisa sobre as últimas gráficas do bairro da Gamboa, Ana Hupe traz objetos de seu encantamento para evocar a escrita e associar sua reprodutibilidade aos gestos mecânicos do nadar. Ir até o arquipélago das Cagarras foi, para Ana, uma forma de tocar o horizonte e descobrir que aquela linha que definia o infinito já estava nela. Foi também uma maneira de responder à vontade de ver a cidade pelo outro lado.
Esse movimento é quase como aquele de quem bate na borda na piscina para retornar ao ponto de partida. É interessante que “verso” tem origem na palavra em latim que definia “revirar a terra”: mais especificamente a virada do boi para a outra linha no processo de aragem. Para Ana Hupe, perceber e desenhar o verso da cidade é uma forma de apresentá-la às avessas, ou, ao menos, demonstrar o interesse de descortinar o que fica "oculto" - na cidade e na linguagem.
Esse azul é nosso e é uma edição que elaborou o resultado de uma entrevista/encontro em Google.doc e mesa de café que começava com “Oi, Gatinha” e terminava com “Tenho que ir”.
Esse preto é meu e nasce no tempo em que estou em SP sozinho, e Ana Hupe já está no Rio enchendo a galeria do mar de verso. Que esse oceano tire o peso do corpo e que, quando for o tempo de pedirmos solidão que seja solidão para o tempo da escrita: para que depois haja um tanto de azul e um bocado de comunhão e troca. Gatinha, tenho que ir.
Bernardo Mosqueira