No desenvolvimento de uma teoria, o invísivel de um campo vísivel não é normalmente algo que se encontra de fora, algo de estranho ao que esse campo define como visível. O invisível é definido pelo vísivel como o seu não-visível, a sua visão proibida: o invisível não é simplesmente aquilo que não se consegue ver porque fica fora do campo do visível (para voltar à metáfora especial), aquilo que fica no escuro da exclusão –mas o escuro da exclusão no seio do próprio vísivel, e definido pela sua estrutura. (Louis Althusser, Ler o Capital, 1968)¹
A ilha de Lampedusa é uma ilha pertencente à Italia mas que fica geográficamente mais perto da Tunísia, no norte de África, do que da Sicília. Com uma pequena população que se dedicava tradicionalmente à cultura da vinha e à pesca, Lampedusa era conhecida como um paraíso turístico, até, na última década, se ter tornado o epicentro duma crise humanitária. Em 2013, uma tragédia marítima tornou essa crise visível: um barco transportando emigrantes que partira de Misrata na Líbia naufragou ao largo da ilha. Mais de 360 refugiados da Eritreia, Somália e Gana pereceram, a maior parte aprisionados no porão. Embora o naufrágio tenha tido grande atenção mediática, os 155 refugiados que sobreviveram são uma minúscula percentagem dos números que todos os meses tentam a travessia do Mediterraneo. O alto comissário das nações unidas (UNHCR) estima que cerca de 165,000 pessoas tentaram entrar clandestinamente na União Europeia no último ano, mais do dobro de anos anteriores, desde que ao número de refugiados da Africa subsariana se juntaram as massas de exilados Sírios que tentam escapar à Guerra civil. Em 2013, 14,753 chegaram à pequena ilha; em 2014, 35.000 foram registados no primeiro semestre mas o número subiu para 48.000 antes do final do ano. Lampedusa tem cerca de cinco mil habitantes.
Quando Ana Hupe chegou à ilha não viu ninguém: nenhum dos indivíduos que formam as estatísticas oficiais era visível entre a pequena população. O casal que aluga quartos na casa onde se hospedou, um ciclista, um velhote que trava conversa, o dono de um hotel de origem Panamense, são alguns dos, muito poucos, humanos que habitam a ilha, onde não parece haver nenhum Africano. Lampedusa é povoada de números mas vazia de corpos.
No difuso universo da economia pós-fordista nada consegue permanecer imóvel, mas a mobilidade não é toda igual. Há a mobilidade visível e a mobilidade invisível. Há a mobilidade de investimentos financeiros, celebridades, turistas, profissionais liberais, e produtos de luxo. E há a mobilidade de refugiados, clandestinos, trabalhadores sazonais, sem-papéis, e precários. Há a ubiquidade da internet, em função da velocidade de cabos de fibra óptica, e há a velha carrinha Ford, que avança aos soluços entre sol e pó, ou o ferry enferrujado que transborda de sobrelotado e naufraga por falha técnica. Há o norte-americano na fila da business class e o africano na fila do Frontex (agencia de fronteiras exteriores da UE). Os refugiados em Lampedusa são o invisível que define o nosso campo do visível: o escuro da exclusão no seio da hyper-representação mediática. Quanto mais aparecem nas notícias, mais desaparecem materialmente, como se a invisibilidade segregada pela máquina burocrática crescesse na proporção inversa à visibilidade mediática.
A pergunta classíca dos estudos de micro-história é sempre: como colocar as grandes questões em formatos pequenos? Como conseguir manter a perspectiva e ainda assim capturar algo do singular? Em suma: como contar uma “história real?” Mas uma história real é um oximoro: as histórias não são vividas, são narradas. Uma “história real” é sempre baseada numa relação dialética entre um formato ficcional e o material documental. Em Lampedusa, Ana Hupe fotografou o colapso das estruturas narrativas. Docas, ruas, filas de casas geminadas, muros, estradas de terra batida. A picturesca localidade parece soturna e desolada, esvaziada de vida e movimento, como se todos os habitantes, tanto italianos como os refugiados buscando asilo, tivessem sido raptados por alienígenas ––possivelmente pelos humanoides informáticos cujas redes de vigilância scanam as águas em permanência, ou talvez a própria ilha seja dotado de uma certa forma de sentiência, à semelhança da “zona” de “Stalker,” da qual também se diz ter o poder de tornar os desejos verdade, como a terra do espaço Schengen. Aos poucos, a história de praias e pescadores transforma-se numa história de fluxos migratórios, soberania, poder, extraterritorialidade e supressão. As fotos da viagem são apresentadas como cartões postais ––esse interface obsoleto na era do correio electrónico. Imagens móveis são aqui imobilizadas como insectos na parede de laboratório; veículos de afecto veiculando estranheza. Da sequencia de imagens há uma que sobressai: é um portal que permanece erecto, isolado no meio da praia. À primeira vista tanto faz contornar as portas como cruzar ao centro, mas não tenham ilusões: ninguém pode decidir como passar o portão, é o portão que gere a diferença entre visibilidade e representação, cidadania e exclusão.
Ana Teixeira Pinto
¹ Tradução da autora baseado na versão Inglesa: “In the development of a theory, the invisible of a visible field is not generally anything whatever outside and foreign to the visible defined by that field. The invisible is defined by the visible as its invisible, its forbidden vision: the invisible is not therefore simply what is outside the visible (to return to the spatial metaphor), the outer darkness of exclusion – but the inner darkness of exclusion, inside the visible itself because defined by its structure.” – (Louis Althusser, Reading Capital, 1968)