Biografía de una isla
Quando cheguei a Cuba era 02 janeiro de 2019. É certo que o contraste do inverno do hemisfério norte com o calor da ilha me fizeram mais sensível, mas aquele era também o primeiro dia de um governo retrógrado eleito no Brasil. As frases socialistas nas ruas de Havana me traziam algum conforto, eram poesia: “Brillamos con luz propia”, “Trincheras de ideas valen más que trincheras de pedras”. As mensagens pintadas à mão tinham uma força extra sobre os outdoors impressos em gráfica.
Atrás de mais abraços em frases, entrei em muitas livrarias e sebos. Perto do bairro de nome poético onde eu me hospedava, Miramar, numa área central da cidade, encontrei ao acaso uma pequena biblioteca clandestina numa casa com jardim, um hostel. Entrei naquela porta aberta para a rua e quando vi, estava a bisbilhotar as publicações em inglês, escondidas como um tesouro. Havia muitas histórias de detetive. Escolhi folhear um livro do Paul Auster. Gosto do passeio por romances policiais, Rubem Fonseca, Agatha Christie descoberta dos 12 anos da estante da minha avó. A sensação de ver um best-seller mundial censurado me causava uma certa confusão, era estranho.
A relação de Cuba com a leitura e com a arte é ambígüa. Todas as publicações nacionais são financiadas pelo Estado, uma bendição, mas também uma forma de controle, de censura. Ouvi muitos protestos e reclamações dos artistas e escritores locais. Fui convidada para reuniões contra o governo em casas de artistas, mas não me senti à vontade para participar. Entendo que os sistemas são falhos, mas minha briga é anti-capitalista, ficava tudo ao avesso demais. Preferi espiar à espreita ali. Morando em outro continente, aprendi a ver a vida macropolítica passar na minha frente sem que eu possa botá-la no bolso.
Nas livrarias oficiais, encontrei muita coisa sobre Fidel, Che Guevara, José Martí, Carlos Marx (!) e bibliografia de orixás. Tudo muito barato, porque os livros já nascem pagos. Eu gostava mais de passear por essas leituras oficiais, um oficial ao revés, o verso do mundo. Naquele momento, era mais meu ritmo do que A trilogia de Nova York, que fascina, compreensivelmente, os moradores da ilha.
Em Miramar mesmo, descobri outro sebo, na varanda de uma casa. Só tinha livro de página amarelada, os oficiais antigos. Achei uma publicação de Emil Ludwig de 1948, Biografía de una isla. Eu não tinha nenhuma referência do autor, nem do livro, mas levei ele comigo e comecei a ler o prefácio: era a história de um indígena cubano acordado da vitrine de um museu no centro de Havana por um turista, depois de 500 anos em estado de múmia. Depois de despertar, ele começa a caminhar e comentar as mudanças que vê na rua. Uma das lideranças indígenas no Brasil, Aílton Krenak, especula que uma das formas de adiar o fim do mundo é continuar narrando. O prelúdio especulativo sobre um traço das origens de Cuba junta o socialismo, a ficção científica (o turista é um cientista que injeta uma substância experimental no índio mumificado para acordá-lo) e uma crítica à ideia da conquista de territórios a qualquer custo.
O prefácio termina com a frase “Y desapareció”, referindo-se ao sumiço do índio de repente, ao virar a esquina. Essa desaparecimento súbito pode referir-se ao genocídio praticado contra os povos originários na ilha, se quisermos expandir seu sentido. Também contém certa fantasmagoria, o personagem se vai, mas deixa um lastro fantástico no ar, como se os costumes, filosofias, saberes do corpo indígena ainda habitassem aquele lugar, de alguma maneira, em seus descendentes urbanos, em pequenos atos como tomar banho mais de uma vez ao dia, preparar uma mandioca, gestos que repetem um passado no inconsciente. Espectros são diferentes dos fantasmas porque continuam circundando, é como se não tivessem passado para o outro lado ainda.
Eu relacionei o desaparecimento da história a um sentido de transformação, deixar de ser uma para virar outra, da Santera Raiza em San Miguel del Padron, que eu visitava semanalmente. Era parte do meu cotidiano tomar a guagua até Virgen del Camiño e trocar por uma lotação até perto de sua casa. Levar biscoitos e passar a tarde conversando, conhecendo seus vizinhos que volta e meio tocavam ali. Falávamos das comidas para os orixás em Cuba, onde tudo, inclusive as oferendas, sofriam adaptações pela falta de variedade de recursos materiais.
Ela me contou de seu processo de iniciação para Yemayá 34 anos antes. Havia dois trajes para a iniciação: o de gala e o de “almuerzo”. O traje de gala só poderia ser usado uma vez, no dia da saída da Iaô (Ìyàwó) e em sua morte (mesmo que somente por cima do corpo, no caso de não caber mais). O traje de almuerzo poderia ser usado ao longo da vida diversas vezes, inclusive muita gente usava o tecido para fazer outras roupas. Ansiosa por me mostrar um traje de gala, Raiza pediu um vestido emprestada à vizinha, já que o seu próprio, ela não poderia vestir. Colocou o vestido azul royal, que é a cor que Yemayá mais gosta em Cuba, e começou a dançar na sala de sua casa, ao som de tambores, até que ela, também, desapareceu.