Texto da curadora Juliana Gontijo, para a exposição Malungas, Temporada de Projetos, Paço das Artes, MIS, São Paulo, BR, 2017.
EVA, COMETAS E ALIENÍGENAS
EVA E SEUS COMETAS
Para renascer de suas próprias cinzas, a Fênix primeiro precisa queimar
― Octavia E. Butler
O passado é um abismo do qual só conseguimos perceber certos destroços e singelas, porém cruciais, evidências genéticas. O que fez com que os primeiros seres humanos (homo sapiens sapiens) deixassem a África há 70.000 anos atrás para percorrer o mundo? Por certo, na origem do percurso está ela, a Eva mitocondrial, primeira ancestral por descendência matrilineal dos humanos modernos. Nas formas primordiais de parentesco conhecidas, uma sociedade ginecocrática carregou consigo a potência de uma organização comunitária[1] que, por sua mobilidade, e segundo a hipótese da origem única, iniciou um ciclo de fluxos migratórios que terminou por expandir a ocupação dos humanos modernos sobre a terra, substituindo as demais espécies de homo existentes.
As populações humanas continuam em permanente deslocamento. Em Malungas, projeto expositivo de Ana Hupe, uma comunidade contemporânea de mulheres parece se reconstituir a partir da imigração recente. O título do projeto se refere à palavra empregada por pessoas escravizadas para definir aqueles que chegavam no Brasil mesmo navio negreiro: suas “novas famílias”. Real e fictícia, simultaneamente, essa comunidade foi reunida por Ana Hupe através de anúncios espalhados pelas cidades de São Paulo e Berlim, que buscavam, para retratos, imigrantes africanas, no primeiro caso, e imigrantes latinoamericanas, no segundo, em troca de uma pequena remuneração.
Imigrantes, nômades, expatriadas, deportadas, exiladas, refugiadas, escravizadas. Todas parecem fundir-se baixo um mesmo denominador comum para aqueles que temem o outro, o novo e a diferença. É intencionalmente equivocada a afirmação de que seus corpos são frágeis e seu futuro, depreciativamente precário. As imigrantes, tal como apresentadas por Hupe, não são esse “outro” do qual se destitui o poder de agenciamento e enunciação. Aqui, precariedade é revertida em poder de inflexão sobre o real. Tenta-se dar visibilidade e outorgar espaço de fala.
Na sala de exposição, retratos de mulheres imigrantes – africanas em São Paulo e latinoamericanas em Berlim – parecem flutuar no espaço escuro (Cartes-de-visite sem nação). Essas fotografias dialogam com a tradição de cartes-de-visite: utilizava-se uma câmera com quatro lentes objetivas para obter, num mesmo negativo, quatro fotografias independentes e multiplicar assim o número de cartões. Albert Henschel, fotógrafo da corte brasileira, aplicava, por volta de 1850, essa mesma técnica para fotografar pessoas de origem africana, livres ou escravizadas, evadindo o exotismo usual para retratá-las com o poder de vontade de sujeitos dignos, e não como objetos. Em Hupe, cada retrato é, aliás, combinado a um fragmento retirado de livros encontrados em caminhadas erráticas pelas cidades que habitou. Selecionadas pela artista, essas frases constroem uma fábula que une origem e destino, história real e fictícia.
Adjacente aos retratos, o conjunto de vídeos Mulheres do 4º mundo apresenta essas mesmas mulheres comentando trechos do diário do cientista alemão Georg Heinrich Langsdorff e da biografia de Mahommad Gardo Baquaqua, nativo de Zooggoo e mantido como escravo no Brasil. Esses fragmentos de leitura versam sobre as tensões causadas pelas diferenças de comportamento feminino resultantes do encontro de múltiplas perspectivas culturais. A distância histórica desses textos, escritos no século XIX, é atualizada e jogada sobre o presente, servindo como lugar de reflexão para a atual condição das mulheres estrangeiras.
Imigrante reincidente e nômade por escolha, Hupe se integra em sua própria fabulação com a instalação sonora Lebensassistenz (assistente de vida). Nela, a artista narra sua experiência enquanto auxiliar de cuidados pessoais na Alemanha. O corpo posto à serviço de outrem, somado à condição de vulnerabilidade e estrangeirismo, é o ponto de partida para um estado de consciência de abandono e objetificação do corpo. O trabalho do imigrante, constantemente subjugado, é, contraditoriamente, a força motriz em boa parte dos países altamente industrializados. Essa ambiguidade gera, no trato pessoal e nas políticas de Estado, uma mistura de repulsão e cuidado, e uma combinação de curiosidade, preconceito e racismo.
As táticas de permanência e circulação num mundo cada vez mais fechado aos fluxos de pessoas são apresentadas com humor e impertinência legal em Casamento branco, um vídeo que combina imagens do casamento real entre Manuela Morales (Chile) e Martin Vallejos (Holanda), celebrado e registrado no dia de abertura da exposição de Hupe em Berlim (ironicamente, dia 1º de abril de 2017), com a narração de MC Xuparina sobre o uso do casamento para obtenção de vistos de residência em países europeus. A arbitrariedade dos procedimentos e o absurdo burocrático da máquina estatal são burlados por uma ação solidária que rehumaniza uma sociedade fragmentada pelas fronteiras impostas pelo capitalismo de Estado.
O preto-e-branco dos retratos, fotogramas e vídeos, combinado à iluminação LED e às placas metálicas que simulam desafiar as leis gravitacionais, confere uma temporalidade perdida entre passado e futuro. Estética e poética constroem aqui uma fábula afrofuturista na qual lê-se uma nova cosmologia: a tradição se alia à tecnologia caseira DIY; a identidade é constantemente redefinida em relação às configurações tempo-espaciais. Nessa tecno-poética negra, a realidade dos corpos imigrantes, portanto, reconfigura um futuro às margens das narrativas do presente.
Como estratégia estética e política, Hupe se aproxima do afrofuturismo para hackear a história e formular perspectivas de um “contra-futuro” num mundo hostil às projeções afrodiaspóricas. No anseio de descolonizar o pensamento, o afrofuturismo inaugura uma discussão “pós-pós-colonialista” e questiona a normatividade e o racionalismo brancos, patriarcais e ocidentais, herdeiros de um iluminismo eurocêntrico que determinou o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Evidencia, portanto, as contradições e omissões da história a partir de novas formas de elaborar o presente e o passado, a fim de construir uma ficção especulativa que reúna tecnologia e mito, coletividade e poder político. A África e sua diáspora passam a ser uma fonte abundante de possibilidades para um futuro ainda a ser inventado, e não apenas a reminiscência de um passado colonial falido. Reencontrar simbolicamente a Eva mitocondrial e sua cosmologia comunitária e matriarcal é, portanto, sentar-se no cometa de um tempo-espaço não-linear, reafirmar o fluxo como condição humana e o intercâmbio como fator de adaptação e aprendizagem.
Juliana Gontijo
Junho de 2017
[1] Knight, C. 2008. “Early human kinship was matrilineal”. Em N. J. Allen, H. Callan, R. Dunbar and W. James (eds.), Early Human Kinship. Oxford: Blackwell, pp. 61-82.
Text by curator Juliana Gontijo, for the exhibition Malungas, at "Temporada de projetos, Paço das Artes", Sound and Image Museum, Sao Paulo, 2017.
EVA, COMETS AND ALIENS
EVA AND HER COMETS
To be reborn from its own ashes, the Phoenix must first burn
- Octavia E. Butler
The past is an abyss from which we can only perceive certain wrecks and simple – but crucial – genetic evidence. What made the first humans (Homo sapiens sapiens) leave Africa 70,000 years ago to walk the world? Of course, at the beginning of this journey is the Mitochondrial Eve, the matrilineal most recent common ancestor of modern humans. In primordial forms of kinship, gynecocratic society1 carried with it the power of community organization, which, by its mobility, and according to the unique origin hypothesis2 , initiated a cycle of migratory flows that ended by expanding the occupation of modern humans on earth, replacing the other existing homo species. Human populations continue in permanent displacement. In the installation Women of the Fourth World (2017), Ana Hupe portrays a contemporary community of women that has formed through a shared experience of having recently immigrated to a new country. Real and fictitious at the same time, this community was gathered by Ana Hupe through advertisements spread throughout the cities of São Paulo and Berlin, posters that looked to portray, in the first case, female African immigrants, and in the second case, female Latin American immigrants, in exchange for a small amount of remuneration.
Immigrants, nomads, expatriates, deportees, exiles, refugees, and the enslaved women: They all seem to merge under one same common denominator for those who fear newness, difference, and ‘the other.’ The claim that their bodies are fragile and their future is contemptuously precarious is intentionally misleading. Immigrants, as presented by Hupe, are not this ‘other’ from which the power of agency and enunciation is dis- missed. Here, precariousness is reversed into the power to change reality.
In the installation, black and white portraits of immigrant women in Sao Paulo and Berlin seem to float in space hung away from the wall on metal plates. These photographs are in dialogue with the cartes-de- visite tradition: a camera with four objective lenses was used to obtain, on the same negative, four independent photographs and thus multiply the number of cards. Albert Henschel, German photographer of the Brazilian court, applied the same technique in around 1850 to photograph royal members and people of African origin, free or enslaved, evading the usual exoticism by portraying them with the willpower of dignified subjects.
In the case of Hupe, each portrait is, moreover, combined with written fragments taken from books found on erratic walks through the cities she has inhabited. Selected by the artist, these phrases construct a fable that unites origin and destiny, real and fictitious history.
Alongside the photographs, a two channel video installation presents these same women reading and commenting on excerpts from the diary of the German naturalist Georg Heinrich Langsdorff and the biography of Mahommah Gardo Baquaqua, a native of Zooggoo kept as a slave in Brazil. By juxtaposing scenes of the women reading, the work reveals tensions that come from the meeting of multiple cultural perspectives. The historical distance of these texts, written in the nineteenth century, is updated and played with in the present, serving as a place for reflection on the current condition of migrant women.
The materiality of the artworks that comprise Women of the Fourth World – black and white photographs, photograms, videos, and LED lights – gives the installation an impression of a lost temporality between past and future. Aesthetic and poetic tendencies in the work become a futuristic fable in which a new cosmology is read: the tradition is allied to the DIY homemade technology; identity is constantly redefined in relation to time-space configurations. In this techno-poetic, the reality of the immigrant bodies, therefore, reconfigures a future on the margins of the narratives of the present.
Recidivist immigrant, Hupe integrates herself in her own fable with the sound installation Lebensassistenz (2017) (which roughly translates as Assisted Living). In it, the artist recounts her experience as a personal care assistant in Germany. The body put at the service of others, added to the already existing condition of vulnera- bility and foreignness, is the starting point for the abandonment and objectification of the body itself. The constantly subjugated work of the immigrant is, in contradiction, the driving force in most highly industrialized countries. This ambiguity generates, in both personal relations and in state policies, a mixture of repulsion and care and a combination of curiosity, prejudice, and racism.
The tactics of permanence and circulation in a world of increasingly closed barriers are presented with humor and legal impertinence in White Marriage (2017), a video that combines images of the performative binational wedding recorded at the opening of Hupe’s exhibition in Berlin (which ironically took place April 1, 2017), with the narration of MC Xuparina (Marcela Maria, 1978 – 2016) on the use of marriage to obtain residence visas in European countries. The arbitrariness of procedures and the bureaucratic absurdity of the state machine are mocked by an action of solidarity that rehumanizes a society fragmented by the borders imposed by state capitalism.
In other works by Hupe, narrative is treated as individual threads that can be woven into unexpected new drawings for the patterns dictated by the unique line of colonialism. In Leituras para mover o centro (Readings to move the center, 2016), the artist builds a reading room as a meeting place where voices and stories that struggle against erasure emanate. Also in search of stories that resist and reverberate like echoes, the artist starts another project: Muito futuro para uma só memória (A lot of future for one single memory, 2017). Here, she goes to the backlands of Pernambuco (sertão) in search of fragments of the life of Maria Francisca da Conceição (unknown date of birth - 1961). As the artist enters, physically and poetically, a terrain that bears the marks of invisibility, racism, and social inequality, she touches on the harsh question of privilege and representation. Who has the right to tell his or her own story and to whom has the power to tell other people's stories been entrusted?
Hupe's aesthetic and political strategy is to hack history and formulate perspectives for a ‘counter future’ in a world hostile to autochthonous and afrodiasporic projections. The project questions white, patriarchal, and Western normativities and rationalism, which are the heirs of a Eurocentric Enlightenment that determined the development of science and technology. It therefore highlights the contradictions and omissions of history by offering new ways of elaborating on the present and the past in order to build a speculative fiction that brings together technology with myth, as well as collectivity with political power. Africa, its diaspora, and Latin America become an abundant source of possibilities for a future yet to be invented and not just the reminiscence of a failed colonial past. To symbolically rediscover the Mitochondrial Eve and her communal and matriarchal cosmology is, therefore, to sit in the comet of a non-linear time-space, to reaffirm the flow as a human condition and the ex- change of barter as a factor in adaptation and learning.
In a gynaecratic society only the offspring in the maternal line are taken into account. Cf. C. Knight, ‘Early human kinship was matrilineal,’ in Early Human Kinship, N. J. Allen, H. Callan, R. Dunbar and W. James eds., Blackwell, Oxford, 2008, pp. 61-82.
The unique origin hypothesis is the most accepted hypothesis within paleontology. It states that all human society descends from a single group of Homo sapiens who lived approximately 300 thousand years ago
JULIANA GONTIJO