Contradições da viagem
Con___dições da viagem
(freely translated)
The maps overlap in such a way that
each one finds in the next a relocation,
instead of finding in the preceding ones an origin:
from one map to the next,
it is not a search for an origin,
but an evaluation of the displacements.
— Deleuze
Por Maykson Cardoso¹
1.
Para compreender as “cartografias triangulares” que Ana Hupe nos apresenta, é preciso saber, antes de tudo, que não encontraremos nelas qualquer coisa semelhante a mapas, pelo menos no que diz respeito às representações de divisas geográficas. Estas fazem parte de outra espécie de cartografias: se são mapas, são mapas de intensidade, com os quais a artista nos coloca diante daquilo que a atravessou, enquanto ela mesma navegava por Brasil, Cuba e Nigéria. Suas cartografias se compõem de registros fotográficos, fílmicos, ou mesmo de pequenos objetos que ela recolheu pelo caminho, imantados com suas vivências e percepções e rearranjados a partir do critério ou método da “triangulação”. Isto é: seu modo de aproximar, sobrepor ou justapor esses elementos com o objetivo de dar a ver ou criar um terreno — e um terreiro — comum entre eles e, consequentemente, entre os lugares de onde vêm.
O primeiro sentido dessa “triangulação” decorre de relações entre esses três países, marcados pela violência colonial que inevitavelmente funda o seu ethos comum; uma violência cujos efeitos se fazem valer ainda hoje, atendendo por nomes como extrativismo, escravagismo, exploração ou, ainda, “progresso”, capitalismo, necroliberalismo². Assim, a “triangulação”, enquanto método, que também reverbera na forma do triângulo que aparece em alguns desses trabalhos, é mais do que o mero exercício de quem se dedica a encontrar conexões entre destinos de viagem: é um meio de dar forma a essa história em comum, de denunciar o primeiro ponto de intersecção entre a história desses lugares, que curiosamente aparecem nos antigos mapas como o Triangular Trade que lançou as bases da geopolítica e, portanto, da economia extrativista e escravocrata do período colonial.
Ao observar aspectos culturais da religião tradicional iorubá que chegou ao Brasil e a Cuba com a expansão do mercado negreiro que escravizou milhares de negros africanos no “Novo Mundo”, Ana Hupe não quer encontrar as origens da religião, mas, antes, avaliar, como nos diz Deleuze, na epígrafe, o seu deslocamento: o que é que se conserva e o que é que muda no que diz respeito à tradição religiosa iorubá de um lugar a outro ao longo do tempo? Quais foram as táticas utilizadas para garantir a sobrevivência da religião tradicional, a despeito de todas as proibições no novo continente? Algumas pistas se evidenciam, por exemplo, nos cânticos sagrados do candomblé brasileiro ou da santería em Havana: cânticos que uma pessoa da etnia ioruba, muitas vezes só consegue reconhecer hoje graças à melodia que se manteve ao longo dos séculos, uma vez que a língua só sobrevive em poucas palavras litúrgicas.
2.
É preciso olhar esses trabalhos buscando o que neles se desvela como índice do conflito, da contradição. Por exemplo, em Street poems, a artista nos traz frases encontradas nas ruas de Havana como “Trincheras de ideas valen más que trincheras de piedras” e “Brillamos com luz propia”, sobrepostas a trechos da Constituição Cubana, vendida em um jornal ao preço de 1 CUC em diversos quiosques espalhados pela cidade. A primeira frase, de José Martí, fundador do Partido Revolucionário Cubano e organizador da Guerra da independência de Cuba no final do séc. 19; a segunda, deriva de um dos versos da Canción por la Unidad Latinoamericana, de Pablo Milanés, cujas últimas estrofes lembram líderes revolucionários latino-americanos — Simón Bolívar, o próprio José Martí e Fidel Castro — para convocar a unidade do continente:
Lo que brilla con luz propia nadie lo puede apagar
Su brillo puede alcanzar la oscuridad de otras costas
Qué pagará este pesar del tiempo que se perdió
De las vidas que costó, de las que puede costar
[...]
Bolívar lanzó una estrella que junto a Martí brilló
Fidel la dignificó para andar por estas tierras
Bolívar lanzó una estrella que junto a Martí brilló
Fidel la dignificó para andar por estas tierras
Mas se esses ideais utópicos que fundamentaram a revolução daquele país são aí citados, em outro trabalho, Ana Hupe nos oferece a imagem de uma “utopia despedaçada”; a artista toma a Utopia de Thomas Morus — livro lançado no século 16 que narra a história fictícia de uma “sociedade ideal” —, arranca-lhe a capa e picota suas páginas. Se à primeira vista seu gesto pode parecer de rechaço ao “idealismo utópico” para se entregar à melancolia da morte das grandes utopias, a ação sublinha a utopia como algo de insuficiente: é preciso despedaçá-la, não para descartá-la em seguida, mas para buscar outros modos de pensá-la e reconstruí-la.
Às páginas trituradas, soma-se a sua Biografía de una isla, com trechos do livro homônimo de Emil Ludwig. Neste livro, conta-nos, o autor parte de uma “das lendas do mito de origem de Cuba, narrado por um indígena que estava trancado em um museu no centro de Havana há 500 anos e que, de repente, acordado por um turista, começa a analisar as mudanças desde a colonização”. Talvez venha de um olhar que não é mais só aquele do homem europeu, essa possibilidade de repensar e reconstruir nossas utopias despedaçadas, isto é: as que não sejam mais orientadas só pela letra de um Thomas Morus, de um Karl Marx et caterva, mas que se deixe orientar também pela voz do nativo que toma a palavra para narrar, ele mesmo, a colonização que o violentou.
Que Emil Ludwig seja outro homem europeu a especular sobre a história da ilha caribenha, é apenas mais uma das contradições que aparecem, como dizia, em outros trabalhos; algo que a artista parece deixar marcado ao fazer uso da técnica do transfer, que consiste em transferir o conteúdo de páginas de livros, jornais ou fotografias, colando-as sobre a superfície da madeira com um produto especial. O conteúdo transferido fica, ali, fixado, mas aparece-nos invertido, espelhado, com o aspecto de um afresco antigo, de uma parede descascada ou de um lambe-lambe esquecido e desgastado. No caso específico dos textos, se esta técnica não impossibilita a sua leitura, ao menos a dificulta; aquilo que poderia ser apenas um detalhe formal, ganha o sentido disruptivo semelhante ao de picotar as páginas da Utopia: se o texto ali resiste, resiste enquanto resto; e a forma vem também da ação de destruir algo sem depois descartar, porque não há outra possibilidade senão o de trabalhar com aquilo que nos resta.
O transfer é também a técnica utilizada em As noivas dos deuses sanguinários, que parte de uma matéria jornalística de O Cruzeiro, publicada em 1951. O título do artigo, que nomeia o trabalho, já é um tanto sensacionalista. Foi o primeiro registro de rituais de iniciação do candomblé na imprensa brasileira. A matéria causou polêmica devido à exposição de mistérios de um ritual restrito a iniciados na religião. A ambiguidade do seu título coloca as mulheres enquanto noivas de deuses violentos, uma representação depreciativa dos orixás cultuados nas religiões de matriz africana. Ciente disto, Ana Hupe recupera as páginas da revista, corta as fotografias, transfere-as para a madeira, retalha-as e remonta-as conservando, entre os retalhos, frestas. Se de algum modo nos dá a ver aquelas páginas, nelas faz incidir a mesma atitude: a de quem não nega a existência de um documento desse tipo e, tampouco, o seu teor de violência; acusa-lhe a sua existência e nela deixa as marcas da sua inconformidade.
Neste jogo com as contradições, as imagens tornam-se mesmo aquele tipo de “imagem-dialética”, de “imagem crítica” — conceito de Walter Benjamin que, no Brasil, tem sido constantemente retomado desde o ponto de vista de Didi-Huberman; grosso modo, pode-se pensar essa imagem como aquela que é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário e que, por isso, quando as olhamos, elas nos confrontam, devolvem-nos um olhar que também nos interroga. Seja como for, se o que Ana Hupe nos apresenta são imagens dessa ordem, isto pode nos levar a pensar que ela não possui nenhuma compreensão naïf de cultura; todo monumento da cultura, como também nos advertira Walter Benjamin, é também um monumento da barbárie. Recusar o jogo inerente entre a cultura e a violência — especialmente aquela da dominação — seria como jogar a poeira para debaixo do tapete, recalcar o trauma para evitar a sua elaboração que certamente é difícil, mas sem a qual jamais será possível prestar contas com o nosso passado. É de uma posição como esta que a contradição ganha um valor positivo: ela demarca o ponto a partir do qual o trabalho dessa “elaboração”³ é necessário.
3.
Em Hegel e o Haiti, Susan Buck-Morss retoma a famosa “dialética do senhor e do escravo”⁴ para mostrar, baseando-se no contexto histórico, que Hegel provavelmente a formulara inspirando-se nas informações que lhe chegaram da “Revolução Haitiana”. Embora ele jamais tenha mencionado qualquer referência a esse respeito, ao analisar as evidências que lhe permitem construir essa hipótese, a filósofa americana questiona:
Ou Hegel era o mais cego de todos os filósofos cegos da liberdade na Europa iluminista, deixando Locke e Rousseau para trás em sua capacidade de negar a realidade debaixo do seu nariz [...], ou Hegel sabia — dos escravos reais que foram vitoriosos em sua revolta contra os seus senhores reais — e elaborou a dialética do senhorio e da servidão deliberadamente no âmbito de seu contexto contemporâneo.⁵
Esta hipótese demonstra o quanto a liberdade apregoada pelo iluminismo (a Aufklärung) europeu, um dos ideais que sustentaram a Revolução Francesa, não tinha nada de “universal”, como pretendia; quando a Revolução Haitiana quis fazer uso destes mesmos ideais para se libertar da sua condição de colônia francesa, Napoleão mandou-lhes as suas tropas para impedir a independência. A universalidade desses valores, portanto, estava resguardada ao povo europeu.
É preciso lembrar que as “notas de rodapé” surgiram primeiramente como uma resposta ao contexto europeu; de sorte que elas são, também, parte de uma estratégia para tornar um pouco mais compreensível aquilo que ainda é desconhecido ou ignorado para o espírito forjado por essa Aufklärung europeia, isto é: os modos de pensar ou fazer o mundo que muitas vezes ainda são lidos neste contexto apenas sob a chave do “exótico”, do “excêntrico”, do “místico”.
Diferente das colônias, que provaram da violência da colonização e ainda hoje — a despeito das independências — vivem as mazelas dos seus efeitos, a Europa ainda carece de posições mais contundentes que possam colocar em xeque a sua hegemonia, que insistam em trazer elementos de fora para desestabilizar, de dentro, a placidez de seus domínios — incluindo, aí, o domínio epistemológico, como demonstra Susan Buck-Morss, que se faz valer ainda como substrato para a União Europeia, erguida a partir desses “valores universais”. De qualquer modo, essas “notas de rodapé”, esse paratexto comum aos textos mais complexos, em nenhuma hipótese conduzem a leitura de seus textos-trabalho; com elas, a artista quer apenas se assegurar de um coeficiente mínimo para a inteligibilidade.
¹ Maykson Cardoso é doutorando em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e, atualmente, vive e trabalha em Berlim.
² Tomo de empréstimo o termo recentemente utilizado por Achille Mbembe em entrevista à Folha de São Paulo, na qual o filósofo fala sobre os efeitos da pandemia do coronavírus; nela, ele critica o modo como os neoliberais tratam a vida das pessoas: reduzindo-as a um número nas estatísticas. Assim, ele relaciona o seu conceito já largamente difundido de “necropolítica” — grosso modo: a política de governos que determinam quem pode viver e quem pode morrer — ao modelo econômico do necroliberalismo que coloca a economia sobre tudo e todos. Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/amp/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml
³ Em alemão, “Aufarbeitung der Vergangenheit” — a “elaboração” ou, como traduz Jeanne Marie Gagnebin para o português, “perlaboração do passado” — é o título de um dos textos em que Theodor W. Adorno propõe uma série de saídas necessárias para compreender e confrontar, no contexto alemão, o nazismo e o seus efeitos sem recalcá-lo, isto é, sem esquecer ou fazer de conta que ele nunca houve.
⁴ Cf. HEGEL. A dialética do senhor e do escravo. In.: <https://portalvermelhoaesquerda.wordpress.com/2016/08/16/hegel-a-dialetica-do-senhor-e-do-escravo/>.
⁵ BUCK-MORSS, S. Hegel e o Haiti. São Paulo: N-1. p. 78.